Saúde mental virou tendência: popularização, diagnósticos e memes.

Hoje em dia, falar sobre saúde mental virou algo comum. Desde a pandemia, esse tema ganhou muito espaço, e é cada vez mais natural ouvir alguém dizer que “é preciso cuidar da saúde mental”. Só que junto disso, veio um fenômeno curioso: não foi só a importância do assunto que se espalhou, mas também os termos e conceitos vindos da psicologia, psiquiatria e psicanálise.

Expressões como “tenho TOC de limpeza”, “tô em burnout”, “isso me dá gatilho” ou “meu TDAH não deixa” viraram parte da conversa cotidiana. Algumas delas já soam quase como gírias, outras como meme. O que antes era restrito a um consultório hoje está nas rodas de amigos, nos memes e nas redes sociais. 

De certa forma, isso mostra que estamos mais abertos a falar sobre sofrimento, algo que por muito tempo foi tabu. Mas há um ponto importante aí: será que estamos entendendo o que estamos falando? Ou será que transformamos esses termos técnicos em palavras soltas, vazias de sentido? 

Para tratarmos desse assunto, vamos voltar um pouco na história e apresentar alguns pontos importantes.


A era do “neuro” e a popularização da linguagem da mente

Desde o fim do século XX, as ciências da saúde, especialmente Medicina e Psicologia, passaram por uma grande virada. Surgiu uma certa “ideologia da cerebralidade”: um conjunto de ideias de que tudo sobre o ser humano e sobre a mente humana se explica pelo cérebro. Com novas tecnologias como a ressonância magnética e a ascensão das neurociências, a dimensão neurológica ganhou muita relevância na contemporaneidade, influenciando muito das comunidades científicas, com o prefixo “neuro” se fortalecendo e surgindo vertentes como neuropsicologia, neuropsicanálise, neuropsicoterapia e até mesmo neurolinguística, neurosociologia ou neuropolítica

Esse discurso saiu das universidades e invadiu o cotidiano. Basta olhar as prateleiras das livrarias e identificar a popularidade de temas como “Pense como um milionário” ou “Descubra os segredos da mente”. A palavra “mente” virou sinônimo de poder, performance e sucesso; “desvendar” ou aprender como outras pessoas supostamente pensam virou um objetivo corporativo. O problema é que, junto com isso, reduzimos a complexidade da mente humana a algo que pode ser “revelado” no cérebro.

Assim, a linguagem médica e psicológica passa a fazer parte do nosso dia a dia — mas sem o contexto que lhe dá sentido. Termos clínicos se tornaram expressões populares, e diagnósticos psiquiátricos, identidades de rede social.


O diagnóstico virou etiqueta

Daí pensamos em outro ponto muito comum atualmente: o diagnóstico. Uma rápida busca na internet e nas redes sociais por saúde mental ou qualquer pesquisa correlata vai muito prontamente apresentar ao leitor a questão do diagnóstico: “5 sinais de que você tem ansiedade”, “Descubra se você tem TDAH”, “Como é a cabeça de quem tem TOC”. Muitos desses conteúdos são bem-intencionados, mas acabam alimentando a cultura do autodiagnóstico.

Quando a gente sente algo — tristeza, raiva, medo, falta de foco —, corre pra internet e rapidamente “descobre” que, por exemplo, uma tristeza pode ser “depressão”. 

O diagnóstico psiquiátrico deixou de ser uma questão de técnica, de discussão médica, e começou a ser a forma que nomeamos comumente nosso sofrimento. O diagnóstico passou a ser a forma como a gente concebe o nosso sofrimento. Nomear o sofrimento traz um alívio momentâneo: “ah, então é isso que eu tenho”. Mas o problema é que, sem escuta e sem acompanhamento profissional, isso vira um atalho perigoso.

Diagnosticar não é rotular; é um processo clínico, feito com escuta, tempo e cuidado. Processo que nem sempre termina em um diagnóstico — às vezes, o trabalho terapêutico acontece justamente antes disso ou nem passa pelo diagnóstico. 

Nesse ponto, podemos usar essa banalização para falar do tema principal aqui: a patologização da vida. Esse termo se refere ao processo de transformar comportamentos, sentimentos e situações comuns em doenças ou entidade patológicas, quando, na verdade, não são.

É como nos exemplos que já citamos: não é porque você está triste ou chateado que tem depressão; ou porque uma criança é agitada e “não para quieta” que ela tem TDAH. A tristeza faz parte da vida, assim como a energia e a curiosidade fazem parte da infância.

Ligado a isso, há também a medicalização da vida, que ocorre quando passamos a entender quase toda experiência humana sob uma lógica médica. Trata-se da apropriação da medicina sobre os fenômenos humanos, o que acaba produzindo uma ideia de “normalização” da população. Em outras palavras, a medicina tende a buscar a produção de “pessoas normais”. Se você sente dor de barriga, algo “anormal” está acontecendo; vai ao médico, ele te dá um remédio, e a dor passa — ou seja, você “volta ao normal”.

Quando falamos de medicalização da vida, não estamos nos referindo apenas ao uso de remédios (embora isso também esteja implicado), mas à essa forma de pensar que transforma qualquer experiência humana em questão médica. É a medicina se apropriando da vida e de seus fenômenos, produzindo explicações e técnicas que visam restaurar uma suposta “normalidade” — e, com isso, produzindo e excluindo tudo o que é considerado “anormal”, isto é, o “louco”.


Sobre patologização e medicalização da vida: memes com a Saúde Mental

Nessa lógica, quem sai da curva precisa ser ajustado — e quem sofre, precisa ser normalizado. Esse olhar médico sobre a vida também produz exclusões: cria a ideia de que há pessoas “normais” e pessoas “loucas”, reforçando preconceitos que a própria Reforma Psiquiátrica e a Luta Antimanicomial tentaram romper.

Um exemplo claro disso é o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial). Criado dentro da Reforma Psiquiátrica, o CAPS nasceu como alternativa aos manicômios, defendendo uma clínica ampliada, que pensa o sujeito em sua totalidade social, biologica e subjetiva, enfatizando o protagonismo da família e de sua parceria com a equipe de saúde na responsabilização do cuidado.

Ou seja, é um lugar que foi criado para combater o manicônio, para combater a lógica de internação e afastamento dos “loucos” da sociedade. É um lugar cuja natureza e objetivo é justamente ser um modelo de saúde diferente, integrador, priorizando a família e o resgate do sujeito que sofre com transtornos mentais para ser um cidadão de direitos e deveres.

Mas nas redes, o CAPS virou piada: “Do jeito que o CAPS gosta” virou meme, sinônimo de “coisa de doido”. Isso apaga a importância social e política de um serviço que existe justamente para romper com a exclusão e o preconceito. É um reflexo de como a popularização da saúde mental pode, paradoxalmente, produzir desinformação e banalização.


Falar é bom — mas entender é melhor

É um avanço que hoje possamos falar sobre saúde mental sem medo. Mas é preciso cuidar da forma como falamos. Informação sem contexto pode se tornar risco de transformar sofrimento em moda; autodiagnóstico e nomeação do que se sente a partir de entidades patológicas (como depressão e ansiedade) atrapalha o entendimento geral dos transtornos e causa banalização do sofrimento real das pessoas que sofrem por transtornos mentais. 

Por isso, mais do que repetir termos ou buscar respostas rápidas no Google, precisamos resgatar o lugar da escuta — o espaço onde a fala encontra alguém que ouve de verdade. É o psicólogo, o psiquiatra, o psicanalista ou o CAPS que falam de saúde mental com técnica, ética e humanidade.

Falar que “saúde mental é importante” é só o começo. Compreender o que isso significa — e o que ela exige de nós — é o verdadeiro passo adiante.

Para concluir o assunto, é preciso despatologizar a normalidade. Assim como vimos ao longo do texto, vivemos hoje sob forte influência de um modelo neurológico-cerebral de compreensão da mente humana — um modelo que parte da ciência, mas se estende ao cotidiano, produzindo fenômenos contemporâneos em que diagnósticos e entidades patológicas se tornam a principal forma de nomear o sofrimento.

No entanto, o caminho para uma compreensão mais ampla da vida mental, da saúde e dos espaços de cuidado — e, sobretudo, para o resgate da subjetividade — passa pelo reconhecimento de que “normal” e “patológico” são construções sociais e históricas. A vida, com seus encantos e tristezas, carrega muito mais do que qualquer manual de transtornos mentais ou diagnóstico psiquiátrico poderia descrever.

Referências

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