Relações civis-militares no Brasil sob a ótica da psicanálise: a orfandade e o mito

As relações civis-militares no Brasil sempre foram marcadas por ambivalências, tensões e disputas de legitimidade. 

Em primeiro lugar, algumas considerações importantes sobre o tema “Relações civis-militares”: todas as Forças Armadas, em todos os países, participam de alguma forma da vida política do Estado e da sociedade. Maquiavel diria que não existiria Estado sem Forças Armadas; Napoleão iria mais longe e diria: ““sem exército não há independência política nem liberdade civil”. 

O caso brasileiro, entretanto, é particular. Ao longo de mais de um século, as Forças Armadas mantiveram um poder autônomo sobre a sociedade civil — o chamado militarismo. Esse fenômeno não apenas gerou golpes e governos militares, como também fez com que valores e lógicas próprias da vida militar se infiltrassem na esfera civil.

Seguindo a leitura de Huntington e Janowitz, é possível compreender essa ambiguidade: em países com cultura política consolidada (instituições democráticas fortes e sociedade civil politizada), as Forças Armadas se profissionalizam na direção da obediência ao Estado. Já em países de cultura política frágil (instituições frágeis e baixo engajamento civil), elas se profissionalizam em defesa de si mesmas, de seus próprios valores e de uma noção autogerada de “bem comum”.

O Brasil e a América Latina configuram um caso híbrido: uma sociedade altamente politizada, com elites civis fortes, mas instituições democráticas frágeis. Nesse contexto, as Forças Armadas, em sua tentativa de profissionalização e integração, acabam frequentemente cooptadas por grupos políticos que buscam nelas uma ferramenta de poder. Assim, consolida-se o fenômeno das Forças Armadas como “poder moderador”, uma instituição que intervém para “restaurar a ordem”.

Pode-se dizer, também, que as Forças Armadas funcionam como um espelho das tensões sociais, mas um espelho deformado: os conflitos e ressentimentos da sociedade civil entram nos quartéis e são reinterpretados através da lógica hierárquica e autoritária da instituição

Entre a tutela e a subordinação, entre o protagonismo e o ressentimento, as Forças Armadas brasileiras oscilam em busca de um lugar simbólico na estrutura do Estado. É nesse ponto que se pode recorrer à psicanálise — especialmente ao conceito de “dupla orfandade” e ao mito do “poder moderador” — para compreender o drama simbólico que atravessa a instituição militar.

A orfandade funcional e o sentimento de inutilidade

A “dupla orfandade” diz que as Forças Armadas sofrem, em primeiro lugar, de uma orfandade funcional: o sentimento de que a sociedade e os políticos consideram as Forças Armadas desnecessárias. Num mundo sem guerras regionais iminentes e diante da impossibilidade de rivalizar com potências nucleares, os militares brasileiros experimentam uma perda de função — uma crise de sentido em relação ao próprio papel institucional. Tal percepção não é nova: desde o fim da Guerra Fria e a consolidação democrática, as missões tradicionais de defesa externa perderam relevância, deixando os militares em busca de novas justificações simbólicas e práticas para sua existência.

Do ponto de vista psicanalítico, essa sensação de desamparo remete a uma fragilidade da função paterna, esta que significa a imposição de limites e definição da lei. Quando essa referência simbólica se enfraquece, o sujeito (ou, neste caso, a instituição) tende a experimentar angústia e desorientação. As Forças Armadas, sem um “pai” que as reconheça e lhes atribua função legítima — o Estado civil —, passam a buscar essa função em outros lugares, seja na política, seja no próprio imaginário nacionalista que as idealiza como guardiãs da pátria.

A orfandade institucional e a ausência de reconhecimento

A segunda dimensão é a orfandade institucional: a convicção de que não há interesse político pela agenda militar de segurança nacional. O Brasil democrático, ao priorizar políticas sociais e econômicas, relegou a defesa nacional a um plano secundário. Tal negligência simbólica é sentida pelos militares como falta de reconhecimento — elementos associados, na psicanálise, à função materna.

A “mãe”, para Freud, representa o cuidado, o acolhimento e a possibilidade de ser reconhecido em seu desejo. Quando essa função está ausente, o sujeito tende a reagir com retraimento, ressentimento ou tentativas de autoafirmação excessiva. Assim, as Forças Armadas, sentindo-se não compreendidas nem amparadas por uma “mãe simbólica” — a sociedade civil e suas instituições políticas —, desenvolvem uma posição defensiva e auto justificadora.

Essa orfandade institucional, portanto, expressa o rompimento do vínculo afetivo entre os militares e o corpo social. Em vez de serem reconhecidos como parte do tecido nacional, tornam-se um grupo à parte, dotado de um narcisismo corporativo que busca se proteger da falta de amor e de reconhecimento.

Da orfandade, o mito e o uso das Forças Armadas como “moderador”

Acontece que, ao longo da história, as Forças Armadas acabaram por serem cooptadas por diferentes grupos sociais e políticos. Diversos autores argumentam que os militares intervinham na política para defender interesses de uma classe social, auxiliando muitas vezes na manutenção de transições rápidas de poder político entre classes, a exemplo de intervenções como na República em 1889, na Revolução de 1930, no Estado Novo de 1937, no segundo governo de Getúlio Vargas em 1945, nas ameaças de golpe e derrocada de Café Filho em 1955 e com o golpe militar em 1964 (também apoiado por elites econômicas e sociais). Até mesmo na dissolução do regime militar, a transição democrática somente foi realizada “sob a chancela” dos militares. 

Portanto, alinhado com a dupla orfandade das Forças Armadas, há uma tendência destas em assumir uma posição protagonista e autônoma, muitas vezes à revelia das instituições civis. Trata-se, nesse sentido, de uma formação reativa, uma defesa contra o sentimento de desamparo simbólico. Tal como um sujeito que, sem referência paterna e sem acolhimento materno, busca compensar a falta com gestos de onipotência, o corpo militar tenta ocupar o vazio simbólico por meio de discursos de tutela moral ou de missão salvacionista.

Em termos lacanianos, poder-se-ia dizer que o “Nome-do-Pai” — a Lei simbólica que regula o desejo e impede a fusão entre sujeito e poder — foi substituído por um significante imaginário: o mito do “militar salvador”, figura que se autoriza a si mesma. Essa substituição produz uma circularidade de gozo e ressentimento: quanto mais as Forças Armadas buscam reconhecimento por meio da força, mais se afastam da ordem simbólica que poderia legitimá-las.

Esse mito — analisado por autores como José Murilo de Carvalho e Edmundo Campos Coelho — funciona como uma fantasia coletiva, que legitima a recorrente vocação tutelar dos militares. O Exército não se vê apenas como uma força armada a serviço do Estado, mas como uma instituição dotada de missão moral, responsável por “corrigir” os desvios da política civil. 

Tal fantasia das Forças Armadas reflete, como num espelho, as próprias contradições da sociedade civil brasileira. Assim, quando o Brasil atravessa períodos de desordem política, desigualdade e polarização, é natural que as Forças Armadas também internalizem essa instabilidade simbólica. A oscilação entre o autoritarismo e a subordinação, entre a tutela e o apagamento, reproduz os mesmos impasses que atravessam a vida política civil: a dificuldade em lidar com a diferença, em elaborar seus próprios conflitos e traumas, em estabelecer relações adequadas que reconheçam a historicidade das esferas (civil e militar) e dos grupos e membros da sociedade.

O conflito entre o Eu e o Id: a psicanálise das contradições militares

Sob a ótica da psicanálise, esse movimento pode ser interpretado como uma luta entre as instâncias do Eu e do Id. O Eu — racional e voltado à realidade — corresponderia ao desejo institucional de disciplina, hierarquia e legalidade. Já o Id — pulsional e movido pela necessidade de reconhecimento — aparece na tentação recorrente de romper os limites da subordinação e assumir o protagonismo político.

Freud, ao descrever a dinâmica entre essas forças psíquicas, mostra que o Eu busca manter o equilíbrio diante das exigências do Id e das imposições da realidade. Quando o Eu é enfraquecido — como no caso das Forças Armadas em sua “dupla orfandade” funcional e institucional —, o Id tende a prevalecer, dirigindo-se para o agir impulsivo, dominado por fantasias de onipotência e reparação.

Por uma reconciliação simbólica

O Brasil parece oscilar entre duas atitudes igualmente problemáticas: ignorar os militares ou temê-los. Nenhuma das duas ajuda a construir uma relação saudável. O “mito do poder moderador” e a “dupla orfandade” são, no fundo, expressões diferentes da mesma ferida simbólica: a dificuldade do Brasil em confiar na lei, no limite e na palavra como mediadores do poder. Mais além, diríamos que militares que não se sentem compreendidos e civis não sabem como lidar com eles. Uma relação marcada por desconfiança, ressentimento e, no fundo, por uma profunda orfandade compartilhada — de um país que ainda não aprendeu a simbolizar seus próprios conflitos.

O desafio, portanto, está em reconstruir os laços simbólicos entre civis e militares. O que exige reconhecimento a respeito do civil e do militar como as duas esferas que compõe o Estado e exige, por um lado, oferecer às Forças Armadas um lugar simbólico que não seja nem de tutela nem de exclusão e, por outro lado, exigir das Forças Armadas responsabilidade sobre seus desejos e compromisso com a democracia e à subordinação civil necessária.

Referências

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