O que é felicidade?

Uma pergunta talvez simples e muitas vezes sentida em nosso dia a dia. Mas que remete à muitos e muitos anos da história humana, já tendo sido respondida por diversas pessoas em diferentes tempos. 

Para iniciá-la, vamos retomar um pouco da história dessa pergunta, indo buscar uma primeira visão sobre a mesma no mundo grego antigo. Aristóteles diz em Ética a Nicômaco a respeito do conceito de “Eudaimonia”, a palavra grega que comumente traduzimos por felicidade, por força de não termos uma tradução direta melhor dessa palavra, contudo a ideia de Eudaimonia seria de uma “vida boa”, “bem-estar ou bem-aventurança”.

Aristóteles nos apresenta essa visão a respeito da Eudaimonia e nos convoca a pensar não na felicidade em si, mas no que de fato seria uma vida boa, uma vida plena e realizada. Um tanto diferente da nossa ideia latina de felicidade, derivada do latim felicitas, que significa “fertilidade”, “fartura” ou “prosperidade”, um termo originalmente ligado à agricultura e que posteriormente serviu para descrever esse estado de espírito e subjetividade de “ser feliz”. 

Para Aristóteles, a eudaimonia, a vida boa, seria o bem maior a ser buscado. Seria a finalidade última de todas as ações de um indivíduo, que poderia buscar dinheiro, amigos, relacionamento, um bom trabalho e etc., pensando em ser feliz a partir desses elementos (que portanto não são o fim em si próprios, mas meios para um fim último). Também um ponto importante é que eudaimonia está ligado à outro conceito-chave, “Areté”, comumente traduzido para a nosso idioma latino como “virtude”, que também não é uma tradução muito boa, pois areté seria basicamente “fazer algo bem feito”, “ter excelência em suas ações”, e o nosso virtude vem de virtus, que significa “força” ou “valor” (originalmente designando essas características no homem).

Eudaimonia está ligada com areté, pois essa “vida boa” pregada pelos gregos está inteiramente ligada às atividades exercidas pelo ser humano, que devem ser feitas com excelência. Ao realizarmos nossas atividades “bem-feitas”, com areté, alcançamos a eudaimonia, pois encontraremos prazer e sentido em nós mesmos realizando aquilo que nos compete, aquilo que nos é função de vida, de uma forma excelente. Não precisaríamos de qualquer outro elemento fora disso para encontrarmos a felicidade em nossas ações. 

Pois bem, temos então essa visão filosófica grega e que não precisamos nos estender muito mais que isso para comparar com o nosso “felicitas”. Como dito, nossa concepção de felicidade vem da ideia de fartura e prosperidade, que nos remete à ideia de abundância. Ser próspero, ter fartura e fertilidade na vida são ideias que podem significar inúmeras coisas, mas originalmente carrega o sentido de poder gerar algo maior do que si mesmo, de realizar ações que gerem resultados, de ser uma pessoa fértil no sentido de obter, desenvolver, criar ou conseguir coisas boas para si ou para os outros.

Vamos criticar o que acontece quando pensamos em felicidade hoje, pois parece que três coisas mudaram muito nossa visão atual. 

Em primeiro lugar, passamos a acreditar cada vez mais que a felicidade pode ser um estado permanente, contínuo e eterno de bem-estar subjetivo. Exemplifico essa ideia com a famosa frase dos contos de fada: “e foram felizes para sempre”. Sabemos das estórias e novelas românticas de onde tal frase vem. A ideia de que somos um herói ou heroína que em nossa jornada rumo à felicidade (ou rumo à qualquer bem maior que nós mesmos) acabamos por enfrentar adversidades e desafios e que, sendo bem-sucedidos, acabamos por receber o nosso príncipe ou princesa encantada. Mas a principal crítica não é nem sobre como os elementos da felicidade são apresentados: superação, conquista, amor; mas com as palavras “para sempre”. É como se depois de tudo que passamos, vamos chegar à um estado, à ordem das coisas em que tudo seria perfeito e eterno.

Em segundo lugar está uma questão de que a nossa sociedade e cultura contemporânea tem uma grande primazia sobre o indivíduo. Tanto eudaimonia quanto felicitas admitem algo em comum: ser feliz, ter uma vida boa, ter prosperidade, é algo que acontece entre o eu e o mundo. Claro que é possível ser feliz sozinho, trata-se de um estado de espírito, mas ser feliz sozinho também depende de se sentir justamente em harmonia com o mundo, mesmo que você não esteja em contato com outros indivíduos. Isto é, depende de um certo alinhamento, de se realizar e ser realizado, com a ordem do mundo. Agora, hoje não. Hoje tudo que importa é a pessoa. Ela está no mundo e se relaciona com ele, mas não o vive. Ela vive através de telas e de reels. Ela sabe da guerra na Palestina tanto quanto sabe do namoro do Vini Jr e da Virgínia, ela tem informações e até opiniões sobre isso, mas o que isso significa para ela? Nada. Ela esquece desses assuntos tão rapidamente quanto os aprende. O mundo não marca nada para ela. Tudo que importa para a pessoa e tudo que ela sabe ou vive do mundo só importa e tem valor se for remetido à ela mesmo, se for dela mesmo, se refletir ela mesmo. No fundo, é um grande mundo de Narciso, onde cada um só olha para seu próprio reflexo. 

Terceiro ponto, temos hoje uma realidade onde a felicidade não é um objetivo, é um produto. Exemplo é a “indústria do bem-estar”, avaliada em trilhões de dólares e que abrange inúmeros produtos que se voltam para a alimentação, práticas de esporte, cuidados com a beleza e a estética, tratamentos psicológicos, turismo e afins, ou seja, uma indústria erguida sob o que chamamos de “saúde física e mental”. Claro que praticar esportes, cuidar da pele, ir viajar para Búzios com a namorada ou fazer um churrasco com os amigos são todas atividades prazerosas e que levam à felicidade (lembra que falamos sobre o fazer bem – areté – das atividades trazem eudaimonia). Contudo, o que se vê, especialmente nas redes sociais e nas palavras de influencers, é uma venda de produtos e soluções que iludem o indivíduo e que tendencionam o mesmo à apostar em soluções fáceis para questões complexas da vida.

Portanto, resumindo o que buscamos falar aqui é que, no fundo, a felicidade é algo um tanto delicado, frágil até, que se caracteriza pela subjetividade e individualidade de cada um em contato com o mundo. A felicidade como produto eterno e individual vende a ideia que existe uma única coisa para você e para milhões de outras pessoas que causa o mesmo efeito em todos.

Como se todos precisassem fazer terapia porque “faz bem”; correr 5 km ao amanhecer; socializar religiosamente aos sábados; almoçar com a família aos domingos; ou cultivar relações de trabalho como quem cumpre um ritual obrigatório para ser feliz.

O problema não está nas atividades, mas na imposição silenciosa do “você deveria”. Porque, se em um sábado você preferir o sofá à corrida, o descanso à performance, o mundo logo lhe sussurra que algo está errado — que isso não é saudável, não é bonito, não melhora sua vida.

E é justamente aí que reside o equívoco: na tentativa de encaixar existências únicas em moldes prontos, esquecendo que a felicidade nasce das frestas de cada um, e não de uma cartilha universal.

Viktor Frankl no seu livro “Em busca do sentido”, já bem no começo diz: 

“Não procurem o sucesso. Quanto mais o procurarem e o transformarem num alvo, mais vocês vão errar. Porque o sucesso, como a felicidade, não pode ser perseguido; ele deve acontecer, e só tem lugar como efeito colateral de uma dedicação pessoal a uma causa maior do que a pessoa”

Isto é, a busca pela felicidade é algo não intencional. É como se fosse uma consequência, um “efeito colateral”, do que deveria verdadeiramente se buscar na vida: sentido, propósito. Devemos fazer o que fazemos, agir com o mundo como agimos, não “copiando” ou se comparando com o que outros fazem. Devemos fazer o que faz sentido para cada um de nós realizar. E devemos fazer isso bem feito, com paixão, com virtude, com excelência.

A felicidade é um instante na vida que vale a pena ser vivido. É aquele instante que você não quer que acabe, aquele instante em que as horas passam como se fossem segundos, onde na verdade, ao invés de ser ter primazia do indivíduo, se tem quase um apagamento dele. É quando a gente encontra uma atividade tão prazerosa que esquecemos de nós e do mundo. E pode ser qualquer coisa: ler um livro, observar uma paisagem, desfrutar de uma conversa ou exercer certo ofício. Pode ser algo compartilhado ou não, pode durar um tempo longo ou o espaço de uma tarde somente, mas ocorre. Ela sempre ocorre quando menos esperamos que ocorra, pois de fato não pode ser auto-gerado, não é uma meta; é uma consequência, é o bem final e último das atividades que realizamos. 

Referências

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim, da versão inglesa de W. D. Ross. São Paulo: Nova Cultural, 4. ed., 1991.

CSIKSZENTMIHALYI, Mihaly. Flow: a psicologia do alto desempenho e da felicidade. Tradução de Cássio de Arantes Leite. Rio de Janeiro: Objetiva, 2020

FRANKL, Viktor E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. Tradução de Walter O. Schlupp e Carlos C. Aveline. 25. ed. São Leopoldo.

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