Psicanálise e Política: como os afetos moldam o sujeito político

Quando pensamos em política, muitas vezes imaginamos partidos, ideologias ou instituições. Mas a psicanálise nos propõe um olhar diferente: entender como a política também é atravessada por afetos – medo, esperança, reconhecimento – e como esses afetos participam da constituição do sujeito político.

O sujeito e o corpo político: afetos como fundamento do Estado

A psicanálise (e outras áreas do conhecimento na verdade) apontam que o sujeito não existe isolado. Ele é marcado pela cultura, pela sociedade e suas instituições, assim como é marcado por seu próprio corpo, seus afetos e desejos, que só podem se expressar em relação ao outro. Faz parte do nosso processo de constituição enquanto sujeitos nos remetermos à uma dimensão afetiva e externa da vida, o nosso meio social. O campo do social, do Outro, é entendido como condição
de possibilidade para o surgimento do sujeito enquanto ser de pensamento e afeto, e que é
dotado de um corpo capaz de circular esses dois elementos.

Isso significa que a política está profundamente ligada à forma como experimentamos nossos vínculos afetivos. Vladimir Safatle em seu livro Circuito dos Afetos: Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo aprofunda essa ideia e coloca que a política possui corporeidade, pois tem a capacidade de circular afetos, de afetar o sujeito, incluso seu corpo.

A partir disso, pressupostos, podemos encaminhar questões a respeito do fundamento e organização da sociedade e do Estado em suas diferentes formas, o que nos leva a buscar inicialmente o pensamento de Hobbes sobre o medo da “guerra de todos contra todos” que leva o homem a criar o Estado e aceitar a coerção em troca de segurança.

Em Freud, o “mal-estar na cultura” decorre da repressão das pulsões agressivas que possibilita a civilização, mas produz sofrimento e angústia. Já em Spinoza, o medo e a esperança são afetos complementares: ambos nascem da incerteza diante do futuro, e o papel do Estado seria transformar essa instabilidade em segurança, o afeto que estabiliza o corpo político. Assim, o poder político pode ser visto como gestão dos afetos e da temporalidade social.

O desamparo como experiência universal

Safatle retoma essas ideias afirmando que o poder político circula afetos, especialmente o desamparo. Esse sentimento universal revela a fragilidade tanto do sujeito quanto da sociedade em suprir todas as demandas. Paradoxalmente, é desse desamparo que nascem os vínculos sociais: ao compartilhar medos e esperanças, construímos laços que sustentam a vida coletiva.

Mas a política não se organiza apenas em torno do medo. Com Hegel, podemos pensar a vida política como uma luta por reconhecimento. Mais do que sobreviver, os sujeitos desejam ser vistos e confirmados em sua identidade. É nessa busca por reconhecimento que surgem movimentos sociais, lutas por direitos e novas formas de organização política.

O que nos leva à um ponto essencial: o processo de identificação. Para Freud, a identificação é a mais antiga forma de laço social. É através dela que nos vinculamos a grupos, líderes ou ideais, e também que delimitamos o que não somos. Assim, identificações tanto aproximam sujeitos quanto produzem exclusões. Isso explica como coletividades se formam em torno de ideais comuns, mas também como o ódio e a intolerância podem emergir na política.

Democracia, massas e líderes

Seja pelo medo, pela esperança ou pelo reconhecimento, o sujeito político está sempre em busca de amparo. A democracia, nesse sentido, pode ser entendida como uma tentativa de lidar com o vazio do poder, permitindo que todos participem da representação e da construção coletiva. Ao mesmo tempo, massas podem se agrupar em torno de líderes que encarnam ideais, despertando paixões intensas e até perigosas.

A psicanálise nos mostra que a política não é apenas um jogo de interesses racionais, mas um campo saturado de afetos, fantasias e identificações. Entender o sujeito político exige compreender como ele lida com sua falta, com seu desamparo e com sua necessidade de reconhecimento.

Ao olhar a política sob essa ótica, percebemos que discursos de ódio, polarizações e paixões coletivas não são desvios ocasionais, mas parte constitutiva do modo como os sujeitos se relacionam em sociedade. Reconhecer esse aspecto nos ajuda a pensar em alternativas que não ignorem a dimensão afetiva da vida política, mas que possam transformá-la em potência para vínculos mais solidários, democráticos e éticos.

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